Duas decisões recentes, em países com tradições jurídicas distintas, colocaram em evidência um debate que ultrapassa o Direito e alcança os fundamentos da convivência democrática: os limites do Estado sobre a identidade de gênero. No Brasil, o STJ autorizou, de forma inédita, a alteração de registro civil para gênero neutro, reconhecendo o direito de uma pessoa não-binária de não se enquadrar nas categorias tradicionais de “masculino” ou “feminino”. A decisão, unânime, reafirma que a dignidade da pessoa humana inclui o reconhecimento pleno da identidade de gênero como expressão legítima da individualidade — e que o Estado não deve impor padrões binários quando a realidade humana é mais complexa do que os registros civis comportam.
No Reino Unido, porém, a Suprema Corte seguiu em direção oposta. Em recente julgamento, definiu que, para fins da Lei de Igualdade de 2010, a palavra “mulher” refere-se exclusivamente ao sexo biológico feminino. Mesmo mulheres trans com certificado legal de mudança de gênero não podem ser incluídas em determinados espaços ou políticas públicas destinados às mulheres cis. A decisão britânica, embora reconheça a proteção contra discriminação de pessoas trans, estabelece uma barreira jurídica que restringe o alcance de direitos.
Essa divergência revela mais do que dois entendimentos sobre o tema. Mostra como os Estados escolhem ampliar ou restringir o espaço da liberdade individual diante de estruturas normativas fixas. De um lado, o Brasil avança em uma jurisprudência que reconhece a complexidade das subjetividades e reforça o papel do Direito como ferramenta de inclusão. De outro, o Reino Unido reafirma os limites da linguagem legal como fronteira de validade para a proteção de grupos minoritários, ainda que isso exclua vivências legítimas.
Em um cenário em constante transformação, o acompanhamento técnico e sensível dessas discussões se torna essencial para orientar estratégias jurídicas seguras, informadas e alinhadas ao contexto contemporâneo.